primeiras notas insolentes frente a sacos de pulgas

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“insolente!”, dizem o supervisor na fábrica, a coordenadora do internato, o consenso — um silencioso uníssono — na reunião que ocorre para que se decida o que fazer com Jana (a voz da sua cabeça deverá pronunciar “yana”) em Saco de Pulgas/Pytel Blech, de Věra Chytilová. também diz o pai da personagem sem nome em Fleabag, de Phoebe Waller-Bridge, que a filha é insolente. a acusação de insolência sempre chegou aos meus ouvidos como uma reiteração da hierarquia estabelecida por quem a profere. só chama de insolente quem vê o seu inferior ultrajar seu poder; parodiando Eugène Labiche, ‘o insolente é aquele que não me obedece’. portanto, por regra, todo rompimento com a conformidade carregará a marca da insolência e, na maioria das vezes, essa marca é o rosto de uma mulher.

no saco de pulgas de Chytilová, a quarta parede é o ponto de vista solitário de Eva, uma nova integrante no internato comunitário de fábrica da Tchecoslováquia, onde jovens mulheres passam juntas dias e noites, partilham a janela para ver passarem os rapazes, dividem camas e também o ar livre. cada uma trabalha com seu tino, em costura, teatro etc. Jana trabalha na fábrica têxtil, é habilidosa com os fios e insubordinada com o supervisor. Eva olha e ouve as garotas, mas quem ouve comentários irônicos que Eva faz sobre elas somos nós, que assistimos a tudo por meio do seu olhar. todas as garotas olham para Eva, para a câmera, para nós em confidência e Eva cede sua visão, lançando suas confidências a um espaço aberto no tempo e no mundo. quem olha de volta é Phoebe Waller-Bridge.

quando Fleabag olha para a câmera, ela se transporta para o espaço aberto, olhando de volta para as garotas do internato, para Eva. esse espaço é como uma reiteração de narradora, de quem conta a própria história. de um lado, Fleabag controla a narrativa e conta a própria história e, de outro, Jana e Eva escolhem como contar e o que mostrar. quando a comunidade se reúne para discutir o comportamento de Jana, ela se cala e Eva, ao ser interpelada a contar segredos da amiga, ela nega enquanto olha (enquanto nós olhamos) apenas para Jana e então Eva reafirma: “fique tranquila, Jana. não falarei nada”. então, ali, cada garota, ao olhar para a câmera (para Eva) assina junto a ela o pacto da narração, que só pode ser assinado por quem partilha dos segredos. dessa forma, cada uma deixa surgir sua individualidade dentro do trabalho de tecer uma história coletiva, ainda que, nos dois casos, os acontecimentos escapem ao controle das narradoras.

em um contexto que obriga mulheres a renunciar ao mundo particular e viver em constante presença social, a intimidade é indisciplina. dormir abraçadas é vedado sob ameaça de serem trocadas de quarto, carícias são rigorosamente regradas e a partilha de imagens de galãs ou namorados, proibidas. no escuro do quarto após a hora de dormir, as garotas espalham as sabedorias que recolheram sobre sexo e expressam seus desejos, mas o centro da entropia é Jana. ela ganha a admiração com sua popularidade entre as colegas, mas ao mesmo tempo é o alvo das críticas que a afastam da feminilidade. sua correspondente cósmica, em Fleabag, é recorrentemente submetida a exposições públicas de constrangimento por comportamentos libidinosos, por sua criatividade e desajuste.

Pytel Blech é realizado em 1962, num contexto de pré-ocupação soviética na então Tchecoslováquia, em uma organização social comunista. Fleabag é uma adaptação para série de televisão da peça de teatro homônima e foi lançada em 2016, quando ocorreu o plebiscito do Brexit, muito influenciado por manipulações de redes sociais e pelo discurso conservador de extrema-direita. Nos dois contextos, o desajuste produz uma dinâmica dupla: quem performa a feminilidade é reconhecidamente feminina e aceita, mas ainda abaixo da humanidade; enquanto quem rompe com o papel feminino é afastada do reconhecimento como mulher, no entanto nem por isso será elevada ao lugar do homem, do humano. Desejo afastar daqui qualquer proximidade com teorias de ferradura, pois podemos reconhecer que o contexto do comunismo, guardadas as ressalvas, fez parte de movimentos de emancipação feminina e das proposições das Nouvelles Vagues aos papéis de gênero; já a ascensão da extrema-direita mobiliza o aprisionamento das dissidências. no entanto, enquanto as personagens trocam seus olhares através do tempo, num jogo de plano e contraplano da história, vemos Eva e Jana deixarem rastros para Fleabag desvendar.

são os rastros da selvageria feminina (ou da dissidência de gênero) tentando se compreender com o lugar do gênero nas relações de produção e reprodução da vida. a individualidade e as quebras de moral feminina são temas recorrentes de Věra Chytilová. nas amizades presentes tanto em As Pequenas Margaridas, O Chalé do Lobo, como em Pytel Blech, a partilha das individualidades carregam segredos e ao mesmo tempo faíscas de rivalidade. quando uma colega delata, trai ou constrange a outra, não é exatamente uma quebra do segredo original entre elas, mas a afirmação da economia da amizade entre pessoas enclausuradas, seja por um internato ou por dinâmicas sociais e familiares opressoras. é nas relações que produzimos os rastros da intimidade que tece a história.

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  1. captura do filme, disponível na plataforma Filmicca. ↩︎


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