Ou: Um Conto de Preguiça
Este braço aqui, que eu não sei como chegou ou se eu que cheguei. Não lembro como veio ou vim parar aqui. Mas chamo aqui de “lá em casa” quando eu saio e quando volto, volto para o braço que me acena e nunca exige alimento.
Não tive coragem, até hoje, de tentar qualquer investigação sobre o braço. Ele apenas está aí e eu aqui. Das inúmeras partículas que um dia estiveram soltas no universo e depois resolveram vir formar este braço, nenhuma eu quis mexer de lugar. Ainda que essa quantidade de cores pareçam a pele do braço, ou uma luva mole que envolve a pele aparentemente humana, eu ainda não toquei, não mexi. Não me certifiquei de que é braço o suficiente para que eu possa entrelaçar meus dedos entre os seus.
As unhas estão lá e quase não crescem. Nunca parei, até hoje, pra pensar que se o braço tivesse boca, talvez roeria as unhas. Será que ele espera que a minha boca o faça? Das inúmeras partes de moléculas de cálcio que podem formar uma unha, eu não posso compreender o material que compõe as unhas desses dedos.
Os dedos do braço às vezes estalam. Fazem peteleco, mas acho que inventaram para si o peteleco, sem saber ao certo que faziam um gesto que já é imitação para nós, de corpo todo, que se temos braço, temos cabeça, pensamento e palavra; braço possui alguém, mas é membro, extremidade, e a ele falta centro. Aqui, sou árvore inteira olhando para um galho caído? Ou, como planta grande, não reconheço os arbustos?
Se eu tentar agora, então, raspar as cores do braço o meu sairá tingido. Tornará o meu um braço como esse? Meu braço, que tem cabeça e pensa, ganhará cores tão destacáveis do meu corpo que poderá agir como se nunca me houvesse habitado?
Hoje à tarde, firmo aqui o compromisso, irei oferecer um café ao braço. Só para ver se ele sabe o que fazer com a xícara. Só pra ver se ele derrama em uma boca invisível e deixa o líquido cair em si mesmo, e se, quando ocorrer a queimadura, ele irá sobressaltar.
Vou até a cozinha e tento conversar enquanto ele me espera como se visita fosse. Tento fazer algo literário com sua presença: compartilho alguma epifania, encaminho alguma analogia, ou tento transformar em comédia, procurando um tempo verbal que vire piada. A água ferve e pondero sobre queimaduras, temperatura na pele ou como um pigmento se comportaria com o calor exagerado.
Trago o café e o braço se inclina, mas não posso detectar expressão de curiosidade. Ofereço, ele estende a mão e, como se já tivesse ensaiado, posiciona os dedos na asa da xícara. Tento conversar para criar alguma distração e ver se vou em frente com alguma teoria. Mas, quando questionei se ele não poderia sair por aí caminhando sobre os dedos, como fazem as pessoas de corpo inteiro que plantam bananeira, ele pousou a xícara na mesa de centro e repousou o pulso. Caiu em sono profundo e o tempo mudou de verbo, a tarde caiu no fundo. Minhas mãos derramam café.
Este conto foi publicado pela revista Mormaço em setembro de 2021.
Deixe um comentário