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Depois dos três meses de estiagem e seca, a chuva derretia os rejeitos de óleo deixados pelos carros no asfalto, formando uma película furta-cor na rua em que Gleide dava seus passos cuidadosos até o ponto de ônibus. Depois de todo o tempo de secura e atrito seguro dos pés com o chão, ela agora precisava de cautela para caminhar na umidade da rua, da calçada, do ar que entrava suave por suas narinas irritadas. Talvez o cuidado excessivo também fosse pelo absorvente colocado às pressas no primeiro dia de menstruação, que viera em dilúvio no meio da madrugada. Inclinando os joelhos para dar firmeza às pernas, sequestradas pela justeza da saia-lápis, e aos pés nos saltos grossos do sapato alto, ela ia atenta às gotas disparadas do alto pelas árvores, aos marrons de barro disfarçados pelas folhas molhadas.

Desviou de todas as poças, saltou pela correnteza furiosa que levava as folhas secas a navegar pela sarjeta, chegou ao ponto de ônibus a tempo de pegar o que vinha ainda vazio, podendo fazer o caminho sentada. Será que dá tempo de ver as notificações do celular e responder mensagens? Optou por abrir a barra de chocolate como café da manhã. Retirou da bolsa a embalagem, abriu fazendo um barulho que causou mais rugas na testa da mulher ao lado e deu a primeira mordida. Os dentes, incapazes de conter todo o recheio, deixaram aquele caramelo bambeando pelo penhasco formado no limite do doce e os dedos de Gleide. Antes que ela pudesse lamber ou limpar com a mão, um buraco balançou o ônibus e todo seu conteúdo, em inércia, se agitou. Inclusive a espessa gota de caramelo que despencou, manchando o busto da blusa branca de seu uniforme de recepcionista.

Assim que arrastou a bunda pelo assento para se levantar e descer em seu ponto, lembrou-se de cuidar para que não deixasse nenhuma mancha vermelha. O alívio ao ver a cadeira limpa fez o sangue descer de sua cabeça enquanto os pés cuidavam da descida nos degraus. Quando descia do ônibus e abaixava os alertas, se segurou na porta para garantir o equilíbrio, indo de lado numa abertura de pernas que a solidez da saia-lápis permitira. Seu dedo encontrou a graxa viscosa que explicava o silêncio da viagem, sem nenhum rangido de abrir e fechar das portas exaustas. Os dedos em óleo preto passearam pela testa e cabelos de Gleide que, sem notar, deixou-se pintar da gordura como se fizesse um conserto na própria pele para reduzir o atrito de si com o mundo e retirar os rangidos de seu corpo ao viajar pela rua exausta. Alguns passos ao som do salto grave e as portas automáticas da imobiliária se afastaram de suas mãos sujas, como óleo que repele uma gota de água.

Antes de se colocar a postos para o balcão de recepção, passou pelo banheiro, que em sua sequência de pias ostensivas no brilho e no cheiro de produto de limpeza, fazia qualquer pessoa duvidar que ali era recipiente de restos de pele, sujeira e comida das bocas de gente. Abriu a torneira de uma das louças e levou, com cuidado, algumas gotas para a roupa, depois para a pele e cabelos. Retirou o que pôde das manchas, fechou a torneira e apanhou os objetos que estavam apoiados na bancada. Virou o tronco de costas para o espelho e torceu o pescoço para vigiar a bunda: nada vazado, sem sangue, tudo estava bem e mais uma vez a paz lhe abarrotou a tensão. Um pouco tonta em alívio, apoiou-se na parede. O azulejo agarrou sua mão, recusava largá-la: um enorme bolo de chiclete mascado deixado ali segurou os dedos de Gleide e se apossou das suas unhas feitas. Ela sentiu a goma ainda úmida abraçar seu corpo, pensou que era um monstro residente da alvenaria que resolveu noiva-la e fazer para ela moradia ali para deixar de ser solitário. Se imaginou uma princesa em cárcere. A agitação para se desvencilhar do rosa a lembrou mais uma vez do vermelho. Tudo ainda bem, o absorvente a guardava em paz, sem vazamentos, segura. Livrou-se da goma, abandonou o grude, se refez ao que parecia suficiente.

Com o borrifador de álcool e um pedaço de papel, fazia a limpeza do balcão da recepção para o início brilhante do dia de trabalho na imobiliária para receber corretores de imóveis em ternos alinhados com portfólios de apartamentos desabitados, sem pegadas e impressões digitais, cegos à necessidade da área de limpeza instalada em suas arquiteturas. Com sorriso aberto e manchado por chocolate, a maquiagem incorporando a graxa, a roupa estampada de caramelo, os cabelos endurecidos e os dedos pegajosos digitando e se apegando às teclas, tingindo de rosa as letras, Gleide recepcionou com uma alegria eufórica durante todo o dia. Seu sorriso crescia maior do que as bochechas, empolgava-se no poder de, com máxima simpatia, autorizar ou impedir as entradas no prédio. Estava aliviada pelo sucesso de nenhum vazamento, nenhuma sujeira em suas coxas ou sua bunda. Que alegria ver o dia passar e não se molhar de vermelho.


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